Garrote Vil: o símbolo sombrio da justiça e tortura na Espanha

Durante mais de um século, a Espanha recorreu ao garrote vil para impor a pena de morte — um instrumento que, ironicamente, era considerado mais "digno" do que a forca. Inventado no início do século XIX, esse artefato consistia em um colar metálico fixo ao pescoço da vítima, onde um parafuso era girado até fraturar a coluna cervical. Se tudo ocorresse "bem", a morte era rápida; na prática, porém, era comum que o sofrimento se prolongasse, transformando a execução num processo brutal de asfixia anarquista.
O uso do garrote foi institucionalizado por Fernando VII, que em 1832 aboliu o uso da forca em civis, adotando o colar metálico como método oficial de execução. Embora apelidado de "nobre" quando aplicado a nobres e de "vil" ao povo, o que mudava era apenas a pompa da cerimônia — em ambos os casos, a violenta compressão no pescoço provocava dor e medo, lançando uma sombra sobre a ideia de justiça “civilizada”.
Ao longo do século XIX e início do XX, o garrote vil permaneceu em uso, inclusive em colônias como Cuba, Porto Rico e Filipinas es.wikipedia.org. A partir de finais do século XIX, as execuções tornaram-se menos públicas, migrando para o interior de presídios. Ainda assim, historiadores relatam casos dramáticos, como o de José María Jarabo em 1959, cuja morte demorou impressionantes 25 minutos, evidenciando a face cruel do aparato.
O capítulo mais simbólico e trágico dessa história ocorreu em 2 de março de 1974, quando o regime franquista executou o jovem anarquista catalão Salvador Puig Antich na prisão Modelo de Barcelona. Aos 25 anos, ele foi julgado por um tribunal militar acusado da morte de um policial. Naquele dia, ele tornou-se uma causa‑célèbre: seu caso suscitou protestos internacionais, greves estudantis e inúmeras zonas de tensão política. Poucos minutos antes, outro condenado — Georg Michael Welzel, também conhecido como Heinz Chez — fora executado em Tarragona, numa aparente estratégia para diluir o impacto do caso Puig Antich.
A agonia de Puig Antich, certificada em cerca de 20 minutos, chocou a opinião pública e se transformou num símbolo da brutalidade estatal. Obras de arte, teatro e cinema passaram a denunciar sua morte; o filme Salvador (2006) é um exemplo emblemático dessa memória cultural.
Com o fim do franquismo, a Espanha caminhou para a abolição da pena de morte. A Constituição de 1978 proibiu qualquer forma de pena capital, e até 1995 consolidou a proibição em todos os contextos, inclusive militar. Em 2024, meio século após o último garrote, o governo espanhol declarou nula a sentença de Puig Antich, reconhecendo sua execução como injusta e fora do marco legal da época — um ato de reparação que emocionou suas irmãs, não sem um sabor agridoce.
Hoje, o garrote vil habita o imaginário coletivo como uma síntese cruel: modernidade penal travestida de dignidade que, na verdade, perpetuou sofrimentos prolongados e reiterou a face violenta do Estado. A memória desse instrumento, e sobretudo do caso Puig Antich, permanece acesa — convocando-nos a refletir sobre justiça, poder e lembrança histórica.
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